terça-feira, 6 de novembro de 2007

UMA QUESTÃO DE OPINIÃO

EM JULGAMENTO A MAIORIDADE PENAL

A sociedade discute se os menores infratores devem ser punidos como adultos. Para você, a solução é mudar a lei ou melhorar a educação?

Não acho bacana misturar adolescentes de 16 anos com pessoas mais velhas, que estão há muito tempo no presídio. Se isso acontecer, a pessoa deve sair pior do que entrou Luís Otávio, ator do filme Cidade de Deus (acima, como o personagem Buscapé)
Quando se fala em tomar medidas legais para combater a criminalidade, inevitavelmente vem à tona a discussão sobre a redução da maioridade penal — a idade em que, diante da lei, um jovem passa a responder inteiramente por seus atos, como os cidadãos adultos. Existem atualmente no Congresso Nacional 54 projetos de lei com esse objetivo. O assunto voltou com força ao noticiário depois do assassinato de um casal de namorados em São Paulo, em novembro passado. O principal suspeito de ter arquitetado e cometido o crime, com métodos cruéis, é um rapaz de 16 anos.
Numa pesquisa do Instituto Sensus, de Minas Gerais, divulgada no fim de 2003, 88% dos entrevistados apoiaram uma reforma nas leis que reduza para 16 anos a responsabilidade criminal no país. O Site do Professor também realizou um levantamento informal sobre o assunto e 75% dos internautas que decidiram participar se manifestaram pela maioridade penal aos 16. Como se vê, a idéia conta com o apoio de uma expressiva maioria da população.
Por que tanta gente está disposta a empunhar essa bandeira? Os que defendem a redução da maioridade penal acreditam que os adolescentes infratores cometem crimes porque não são suficientemente punidos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é considerado tolerante demais com a delinqüência e portanto não cumpriria sua função de intimidar os jovens que pensam em transgredir a lei. Além disso, supõe-se que o número de crianças e adolescentes infratores esteja aumentando vertiginosamente, e que essa tendência só poderá ser revertida com a adoção de medidas repressivas.

Soldados do tráfico
É verdade que jovens cada vez mais novos são recrutados por criminosos adultos — sobretudo os chefes e subchefes do tráfico de drogas — para atuar em suas quadrilhas. São personagens que o livro Cidade de Deus, de Paulo Lins, e depois o filme de Fernando Meirelles apresentaram ao mundo: "vapores" (que fazem ligação entre os traficantes e os usuários de drogas), "aviões" (que levam a droga para fora das favelas), "fogueteiros" (vigilantes que soltam rojões para anunciar a chegada da polícia ou do carregamento de droga) e "soldados" (seguranças de pontos de venda).
Em parte é a relativa impunidade que leva o tráfico a procurar "empregados" nessa faixa etária, uma vez que o ECA prevê no máximo três anos de reclusão para menores infratores. Outros motivos que influem na preferência dos traficantes pela mão-de-obra infantil são uma suposta impulsividade característica da idade e o fascínio que a carreira criminosa exerce sobre os jovens. "O tráfico seduz porque promete mais dinheiro, mais respeito e mais força dentro de comunidades em que o contexto familiar se tornou muito vulnerável", diz o geógrafo Jailson de Souza e Silva, doutor em educação e líder comunitário do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.
Diante dessa mistura de ambição de consumo, acesso a armas e ousadia (freqüentemente associada à idéia de que não há nada a perder), não é de surpreender que a figura do "adolescente em conflito com a lei", como é chamado oficialmente, provoque tanto pavor. Também é compreensível que esse sentimento seja comum entre os professores, para quem a situação inspira impotência, uma vez que a escola deveria ser um dos antídotos para a sedução do crime. Mesmo assim, o quadro é menos sombrio do que se costuma crer: as estatísticas mostram que os homicídios cometidos por menores de 18 anos estão bem abaixo de 10% do total do país.

Pena de internação
Uma crítica comum às leis brasileiras refere-se à idéia de que, ao agir, os menores de 18 anos não têm o mesmo grau de consciência que os adultos. Os que querem a redução da maioridade penal freqüentemente afirmam que, nos dias de hoje, um jovem de 16 anos sabe bem o que faz. "Se vemos crianças de 10 anos executando gente, devemos tratá-las como se não entendessem o crime que cometem?", pergunta Paulo José da Costa Júnior, professor de direito penal da Universidade de São Paulo, que diz conduzir uma cruzada pela redução da maioridade penal no Brasil desde 1969. Para reforçar seu argumento, ele lembra que segundo a legislação eleitoral o jovem de 16 anos tem discernimento suficiente para votar, mas que a lei penal entende o oposto.
De acordo com a legislação brasileira, apenas as crianças até 12 anos são inimputáveis — isto é, não podem ser julgadas ou punidas pelo Estado. Se cometerem crime, nada sofrerão. De 12 a 18 anos, o jovem infrator será levado a julgamento numa Vara da Infância e da Juventude e está sujeito a várias punições: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional.
A internação é a opção mais comum. Na prática, os estabelecimentos educacionais que a lei menciona são instituições como a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), de São Paulo. Em geral, elas se assemelham mais a prisões do que a escolas e foram concebidas antes do início da vigência do ECA, em 1990. A freqüência à escola propriamente dita é obrigatória para os jovens que cumprem as penas em regime de liberdade assistida ou semiliberdade. O primeiro é aquele em que o adolescente não é internado em instituição alguma mas deve se apresentar diariamente a um adulto designado para acompanhar seu comportamento. Em semiliberdade, o jovem infrator passa apenas um período do dia recolhido a uma instituição como a Febem.

Convivência nociva
"As unidades de internação do tipo Febem costumam ser idênticas a prisões", diz o advogado João Pedro Pereira Brandão, que acompanha processos judiciais relacionados a adolescentes como coordenador de projetos do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud). "Minha experiência permite dizer que muitas vezes os jovens são punidos mais severamente do que os adultos."
Quando compara a Febem a prisões, Brandão se refere, entre outras coisas, à superlotação, às más condições estruturais e à ameaça permanente de rebelião. Desse modo, as instituições para menores infratores constituem, quase sempre, escolas de crime, tanto quanto os presídios de adultos. As pessoas contrárias à redução da maioridade penal advertem que, se ela for aprovada, adolescentes infratores, quando presos, passarão a conviver com criminosos veteranos.
Um dos pontos mais criticados do ECA é o limite máximo de três anos de internação, não importa qual tenha sido o delito cometido. Alguns países, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, consideram a gravidade do delito mais importante do que a idade do autor. Esse princípio permite à justiça norte-americana aplicar até a pena de morte a crianças. A maioria dos países da Europa e das Américas, porém, adota legislação especial para os cidadãos menores de 18 anos.
"Ao defender uma posição raivosa contra a revisão do ECA, os movimentos sociais se recusam a discutir outros pontos de vista e se afastam da opinião pública", afirma Silva, em referência às pesquisas que mostram a maioria da população a favor de mudanças na lei. Ele é contra a redução da maioridade penal, mas apóia a revisão do limite máximo de três anos de internação.

Direito à educação
A polêmica não se encerraria, no entanto, com a discussão de revisões isoladas do estatuto. O princípio básico da lei — o de que pessoas até 18 anos estão em fase de formação e por isso devem ser objeto de mecanismos de proteção — é questionado por muitos. Silva, ao contrário, o defende: "O ECA foi um grande avanço. Antes, crianças e adolescentes eram vistos como propriedade dos pais, que poderiam até espancá-los. Hoje eles são sujeitos de direitos como os demais cidadãos".
Um deles, expresso no texto do ECA, é o direito à educação, um assunto intimamente relacionado com o adolescente infrator. Segundo pesquisa do governo federal, 96,6% dos jovens que cometeram algum delito não concluíram o Ensino Fundamental. Estatísticas também mostram que o grau de incidência de infrações está diretamente relacionado à carência social das comunidades em que ocorrem. "É tarefa da escola dar aos alunos uma concepção cidadã do ser humano que não se restrinja a seu papel de consumidor", diz Silva. "E para isso ela tem que estar vinculada à comunidade."

Desafio da escola é incluir todos os alunos
São dois os papéis da escola quando se trata do envolvimento do adolescente num ato infracional. O primeiro é de caráter preventivo, com a promoção de uma cultura de paz e tolerância, por meio de uma sólida formação para os valores. O segundo é receber o adolescente que já se tornou um infrator e retorna à vida de estudante. A atitude básica da escola nesse caso deve ser de inclusão. O sistema de ensino precisa se preparar para lidar melhor com esses jovens e os problemas que trazem consigo. A educação é um direito de todos, sem exceção, e o adolescente que tenha um conflito com a lei não pode ser excluído. Nós, educadores, somos preparados para lidar com crianças e jovens que não apresentam problemas de conduta. Se olharmos a realidade atual, no entanto, percebemos claramente que crianças e adolescentes em situação de risco fazem parte da clientela da educação. Professores, diretores, supervisores e orientadores não recebem capacitação específica para lidar com esse contexto. Essa é uma grande falha das redes pública e particular de ensino. Nós temos de ser preparados para não separar o jovem de seu meio. A escola deve ser capaz de acolher o aluno e sua realidade familiar, comunitária ou cultural. Hoje, infelizmente, a regra geral é eliminar o problema pela exclusão do jovem.
Antonio Carlos Gomes da Costa é pedagogo e consultor do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Foi redator do Estatuto da Criança e do Adolescente

Uma experiência que está dando certo
A escola deve se democratizar. E isso acontece quando ela abre o espaço para os alunos de modo que eles se sintam participantes e percebam que têm valor. O objetivo do trabalho em nossa escola é valorizá-los. Abrimos nossas portas grupos de teatro e de dança e colocamos os equipamentos à disposição para aulas de informática. Esse é o primeiro passo para a prevenção da delinqüência. A iniciativa ajudou muito nossos alunos, inclusive aqueles em situação de risco e os que estão sob regime de liberdade assistida. As crianças passam a ver a escola de outro ângulo, não apenas como o lugar onde se estuda, porque muitas associam essa função, isoladamente, a uma atividade chata e sem atrativos. Os estudantes daqui começaram a ver possibilidades e propostas de vida na escola que antes não viam. Alguns passam horas no prédio desenhando ou construindo coisas de que a gente precisava. Como gostam do ambiente, passam a cuidar dele e até as paredes começaram a pintar. Eles podem escolher o que fazer. Um adolescente aprendeu a digitar e me ajudou na coordenação. Outro quis trabalhar na cozinha e umterceiro cuida da portaria. Nós mudamos o nosso olhar em relação aos alunos e eles também mudaram o deles com relação à escola e à vida.
Evaldo Bispo Santana é coordenador pedagógico da Escola Estadual Cohab Bairro dos Pimentas II, em Guarulhos (SP)

Bibliografia : Revista Nova Escola Março de 2004

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